A esquisitice em ver Don Lula Nascimento, o nosso "Pérola Negra" já no descanso merecido, foi bem impactante! Poxa! Pra todos nós que sempre o vimos como uma máquina de disposição, com a energia proporcional a cada peça de uma bateria, as imagens; real e emotiva, não conseguiram se conectar! Eu não gosto de ir a enterros, evito ao máximo ao contrário de muitas pessoas que gostam e fazem desse tipo de circunstância uma oportunidade para "networking", mero aproveitamento para aparentar evidência etc . Um enterro nos faz ter como última lembrança daquela pessoa a quem tanto estimamos, realmente a versão que menos desejaríamos guardar; sem o verniz (todos temos!) , sem suas expressões, manias, enfim, sem características impressas ao mundo que justificaram a nossa presença na última despedida. Nos resta apenas as marcas da batalha da vida, as quais todos estaremos expostos um dia. Quando o alvo da despedida é um nosso herói, por maior aceitação que aprendemos ao longo da caminhada em relação ao final da missão, a nossa carga de emotividade fica mais latente. Luís Nascimento da Conceição foi um herói para algumas gerações de músicos, o nosso linha de frente, pioneiro, o Don (com "n" - o nobre), "Luisinho de Amaralina", o "Baquetas de Ouro".
Cheguei pouco antes do horário marcado, mas as coisas se atrasaram um pouco e esperei do lado de fora da sala que ocorria o velório. Apesar do ambiente de tristeza, saudade e inconformidade que reina em um cemitério, eu só conseguia me lembrar dos nossos encontros sempre cheios de alegria, das muitas vezes que tocamos, de quando o vi tocando pela primeira vez, das histórias contadas por ele e sobre ele, da sua gargalhada escandalosa, do "Má Rapáááááááá!" que externava quando algum solo o agradava muito, e das vezes que na JAM do MAM íamos tocar e ele estava super elétrico, então eu sugeria "Inútil Paisagem", a música preferida dele. Era a alternativa certeira pra agradá-lo, diminuir sua eletricidade e ter oportunidade de tocar o gênero Bossa Nova com o máximo de autenticidade, de uma forma que só ele tocava, "beber na fonte". Sempre era uma nova oportunidade. Eu aprendi a perceber a beleza dessa música, "Inútil Paisagem", com ele...Me lembrei das dezenas de vezes que o via tocando e em seguida ia elogia-lo, e sempre os agradecimentos pelo elogio vinham acompanhados da frase: "Estava suingado, Don?" (Música pra Lula essencialmente tinha que ter muita vibração e "suingue").
A alegria e o entusiasmo para com a música, como sempre me foi ofertado por Lula, não caberia tristeza em detrimento de tantas lembranças, como ter presenciado Nico Assumpção contar como o conheceu: "Eu sempre que ia a Nova Iorque, me encontrava com um amigo saxofonista e ele me falava de um baterista da minha terra que estava tocando muito por lá...Aí que uma vez, fui ver esse amigo tocando e me chamou atenção o baterista, ele se sobressaía do resto do grupo. Quando terminou o som fui perguntar ao meu amigo saxofonista quem era aquele baterista, e ele me disse ser o baterista da minha terra que sempre me falava - Lula Nascimento". Do mesmo Nico, no ensaio (na casa de Ivan Huol) para o projeto JAZZ no MAM que recebia convidados, lembro a reação ao ser perguntado por Ivan sobre a possível canja de Lula: "Ainda está vivo?" (com as mãos na cabeça e rindo bastante!) Nico então contou várias histórias de Lula em N. York e confirmou várias míticas que o cercavam e a satisfação em poder vê-lo novamente.
Lula Nascimento, "Pérola Negra", o maior baterista da história da Bahia, o patrono da nossa música instrumental. Don Lula não será lembrado como o "tio" que todos deixavam dar uma canja na bateria, Lula não, ele será lembrado como o "Mestre" que "balançava a roseira", que mesmo com mais idade, não deixava a "peteca cair", o bandleader da Avant - Garde Jazz Band, na qual orgulhosamente tive a oportunidade honrosa em tocar . Se nos Estados Unidos, berço do jazz, houveram bandas comandadas por bateristas como The Jazz Messengers - Art Blakey, Paul Motian Electric Bebop Band - Paul Motian etc aqui tivemos a Avant - Garde Jazz Band com Don Lula. A Avant - Garde tinha uma música fixa no repertório, "Pinnochio", e por uma razão muito simples, Lula havia feito o teste para substituir Alex Acuña na bateria do Weather Report, uma das bandas mais aclamadas da história do Jazz Rock. Infelizmente, não deu pra Lula, Peter Erskine foi o aprovado nos testes. Eu imagino que ser convidado a fazer o teste para entrar no Weather Report, não bastava ser um baterista mediano. Escrevendo agora, tenho a certeza que esse texto não é uma homenagem a Lula. Todas as vezes que o encontrei, pude homenageá-lo usando de toda reverência a qual ele merecia e em vida. Hoje é dia apenas de reconhecer que ele passou pelos seus 74 anos na "Juventude Transviada", semelhante a que gravou com Luiz Melodia, reconhecer que não foi nada agradável vê-lo, sem receber aquele abraço "quebra - costelas" de costume, que conhecemos o músico que não "Chorou, chorou" e tocava sempre feito um "Terremoto" , seja em Salvador, seja N. York, seja em Paris ou no "Amazonas", impressionando "A Rã", "Nana das Águas" e quem mais aparecesse, sempre "suingado" como gostado de ser percebido e como gravou "Ahiê". E fica a certeza que esse não é nenhum "Fim de Sonho", e que ele já deve estar se preparando pra virar os pratos da bateria, assim como são os retrovisores de algum Lamborguini, em prontidão pra ligar sua máquina de suingar e tocar "Pro Zeca!", com aquela "chuveirada" na introdução (segurando duas baquetas em cada uma das mãos) junto a Victor Assis Brasil e Márcio Montarroyos...E ele tava lá, atento ao "Quem é Quem" da breve despedida, como que se tivesse lido meu texto sobre a modelagem equivocada que fazemos dos norte - americanos (leia aqui) ... e "aquela poeira, a poeira da cachoeira, não vai esquecer hein?! Aquela poeira no caminho da cachoeira...e pra finalizar dê um abraço em Grapette!"..."até um dia, até talvez, até quem sabe?!"
Chico Oliveira.
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